quinta-feira, 19 de março de 2015

O SETE CRIMES DE ROMA

Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Roma, 1514. Leonardo da Vinci conduz a investigação... Tradução Fernando Scheibe Para Sofia, Charles e Pauline. Prólogo Quarenta anos se passaram, e hoje eu também sou um velho. Quarenta anos desde aquela promessa, feita a messer * Leonardo, de só romper o silêncio às vésperas de minha morte. Há quarenta anos a mantenho, e agora é chegado o momento. Esta noite mandei trazer todas as velas que havia na casa, colocar a poltrona e a mesa perto da grande janela e proibi que me incomodassem de agora em diante. O pequeno Lúcio trará minhas refeições e meus medicamentos. Quanto ao resto, veremos. Talvez eu tenha demorado demais... Juro só dizer aqui o que realmente aconteceu. Juro não dissimular nada do que pude escutar ou pensar naquela época. Juro que não pintarei os bons melhores do que eram, nem tornarei os maus piores do que foram. Juro, por fim, se minha memória permitir, contar a mais exata verdade sobre o caso que ocupou Roma no inverno de 1514, e sobre o qual apenas alguns poucos homens souberam o quanto ameaçou o coração da cidade e, talvez, o coração de toda a cristandade. Hoje, não temo mais nada dos outros. * Messer, redução de messere, forma de tratamento respeitosa, equivalente a “senhor”, muito usada no medievo italiano. (N.T.) 1. Quando toda essa onda de crimes de horror realmente começou ? Pois só mais tarde percebi quão longe suas raízes venenosas remontavam na história da cidade. Mas, para o jovem romano que eu era então, como para todos os habitantes da cidade, o primeiro alerta rasgou o céu como um raio na manhã de 20 de dezembro de 1514. Naquela manhã, Flavio Barberi, filho do capitão de polícia Barberi e um dos meus amigos mais queridos, bateu à porta da pequena casa em que morávamos, minha mãe e eu, na Via del Governo Vecchio. O sol mal acabara de nascer e meu espanto foi ainda maior ao ver sua longa silhueta saltitando sob o pórtico, como que tomada de uma excitação que ele não conseguia conter. — Guido – disse ele –, algo terrível aconteceu na coluna, venha comigo ! Mal tive tempo de vestir o casaco e o capuz, de dar uma olhada para o andar de cima, rezando para que minha mãe não tivesse escutado, e ele já me arrastava correndo através das ruelas desertas que levavam ao Corso. Algo terrível na coluna... Quando meu pai ainda era vivo, morávamos mais ao norte, numa bela casa perto da Igreja de Santa Maria do Campo de Marte. A Coluna de Marco Aurélio e a praça que a rodeava ficavam ali do lado e esse era o lugar preferido de nossas brincadeiras de criança. Eu tinha, portanto, dificuldade em imaginar o que poderia ter acontecido num lugar tão familiar, algo que justificasse me chamarem tão cedo. Mas quando perguntei a Flavio sobre isso, ele se contentou em balançar a cabeça e apertar o passo. Talvez seu pai tivesse sido chamado para pôr ordem em uma briga de vagabundos ? Ao chegarmos à praça pela Via dei Burrò, compreendi que se tratava de algo muito mais sério. Cerca de trinta pessoas estavam reunidas em volta da coluna, a maioria em roupas de festa, com estranhas máscaras de animais penduradas na barriga. Algumas mulheres colocavam as mãos na cabeça, e os homens olhavam aturdidos para o céu. Guardas armados cercavam o monumento como se temessem que algo escapasse dali. O mais estranho era aquele silêncio que paralisava a todos. — Lá em cima – murmurou Flavio. Levantei a cabeça, crente de que veria, como sempre, a longa espiral de pedra cinza com desenhos das vitórias de Marco Aurélio contra os germanos e, no topo, a trinta metros de altura, a estátua do conquistador a cavalo. Mas, para minha grande surpresa, o imperador não estava sozinho em sua montaria : alguém estava na garupa, com os braços em volta de seu pescoço. Alguém ou, talvez devesse dizer, o que restava de alguém : um corpo nu, vermelho de sangue, horrivelmente decapitado. Uma espada curta estava enfiada em suas costas, como uma flecha no meio de um alvo. Àquela distância, não dava para distinguir se o corpo pertencia a um homem ou a uma mulher. — O que estão esperando ? – eu disse. – Há uma escada nessa coluna, é preciso subir e tirar dali essa abominação. — Meu pai saiu em busca das chaves – respondeu Flavio. – Mas é preciso encontrar o oficial encarregado delas, e temo que, a esta hora... Além disso, se corri até sua casa é porque o mais interessante ainda está por vir : supõe-se que o autor desse... dessa coisa ainda esteja ali dentro. — Dentro ? — Sim, houve uma festa aqui ontem à noite, no Palácio Marcialli. Os músicos tocaram na praça, e um grande número de convidados dançou a noite inteira. Alguns chegaram mesmo a dormir em tendas ao pé da coluna – ele apontou para um bolo de cobertores grosseiros jogados um pouco mais adiante. – Segundo essas pessoas, ninguém poderia ter saído pela porta sem ser visto. É possível, portanto, que o rato ainda esteja em seu buraco. Não tive tempo de manifestar minhas dúvidas, pois uma pequena tropa de cavaleiros, conduzida pelo pai dele, irrompeu entre nós. Todo mundo recuou para o Palácio Marcialli, tremendo à ideia do que se iria descobrir. Um homem magro e calvo, que eu via pela primeira vez, abriu a porta do monumento com uma enorme chave que tirou de sua bolsa e saiu rapidamente. O capitão Barberi fez um sinal para dois de seus soldados entrarem com as armas em punho. Ficamos esperando que alguma coisa acontecesse, com o coração batendo forte, o olhar indo e vindo entre a base e o topo da coluna. Mas os dois homens logo apareceram lá no alto, na plataforma que servia de base para a estátua : — Não há vivalma na escadaria, capitão. Um murmúrio de alívio, mas talvez também de decepção, se ergueu da multidão. Dois outros guardas se lançaram então pela passagem para tirar aquele macabro fardo do imperador. — Venha – disse Flavio, me puxando pela manga. Tivemos de nos acotovelar um pouco para conseguir chegar até seu pai, que estava numa acalorada discussão com o oficial das chaves : — E ninguém mais tem acesso a esse molho de chaves ? — Ninguém, capitão. — E você não notou se as chaves andaram sumindo nos últimos tempos, ou se alguém as pegou emprestadas ? — Elas nunca deixam esta bolsa, que fica trancada com as outras no cofre do meu quarto. Impulsivo como se é naquela idade, não pude me impedir de dar um passo adiante e intervir : — Não existem cópias que alguém poderia ter pegado ? Minha pergunta pareceu incomodar o oficial, que me fulminou com um olhar cheio de raiva. Felizmente, o pai de Flavio me acudiu : — Não se altere, oficial, este é Guido Sinibaldi, filho do antigo xerife de Roma. Ele herdou do pai o gosto pelos enigmas e, quem sabe, um pouco do talento. Você pode responder para ele como se fosse para mim. Ele me cobria com um olhar afetuoso, e o outro não ousou se esquivar : — Existem cópias das chaves das colunas, assim como de todos os edifícios de que sou encarregado, é claro. Mas elas estão no Castelo de Santo Ângelo, ainda mais bem guardadas do que em minha casa. O Castelo de Santo Ângelo... Se alguém queria se apoderar dessas chaves, parecia de fato mais lógico tentar roubá-las do oficial do que da fortaleza do papa. Nesse momento, os quatro guardas saíram da coluna e um frisson de pavor percorreu novamente a assistência : eles carregavam nos ombros um corpo horrivelmente decapitado e trespassado pelo que parecia ser uma adaga. Assim que o colocaram no chão, de lado, fizemos um círculo em volta do despojo : tratava-se incontestavelmente de um homem, mais para jovem, a julgar pelo vigor de seus músculos, e inteiramente endurecido. Sua pele, azulada pelo frio, estava recoberta de sangue em todo o torso. A ferida no pescoço era abominável, mistura de carne vermelho-escuro e de cartilagens moídas recobertas por uma película translúcida. Devia ter sido necessária uma força sobre-humana para cortar os ossos do pescoço com tanta violência. Apesar do frio, um cheiro nauseabundo já exalava do cadáver. Vários soldados fizeram um gesto de repulsa e, guiado por não sei que instinto, me aproveitei do estupor deles para deslizar até a coluna. Como imaginava, o interior era bastante sombrio e úmido, com um forte odor de salitre e de lugar fechado. Uma escada de pedra em espiral, que ocupava a maior parte do espaço, projetava para o topo seus cerca de 200 degraus. Sua base formava uma espécie de abrigo onde dois homens poderiam ficar agachados facilmente. O chão estava marcado por grandes manchas escuras, poças do sangue da vítima. Mas nenhuma arma ou objeto traía a presença do assassino. A mão do capitão Barberi pousou de repente sobre meu ombro : — E então, o que pensa o nosso jovem médico ? Encarei-o um pouco constrangido : — Queira desculpar essa audácia, capitão, a curiosidade foi mais forte. Não ignoro que... — Não tem problema – ele disse. – O homem foi morto aqui mesmo, você concorda ? Estava me preparando para responder quando meus olhos, já habituados às trevas, notaram alguma coisa atrás dele : — Parece que tem um desenho nessa parede, capitão, olhe... Ele abriu um pouco mais a porta para aumentar a iluminação, e descobrimos juntos uma inscrição que provavelmente fora traçada com um dedo embebido em sangue fresco : “EUM QUI PECCAT...” “Aquele que peca...” — Isso não me diz nada – declarou o pai de Flavio, franzindo as sobrancelhas. – Não, nada que valha... Reli o que escrevi até agora de uma sentada e devo reconhecer que não fiquei muito insatisfeito. Foi mesmo assim, dessa maneira brutal, que tomamos conhecimento daquilo que se tornaria, para muitos, a encarnação sangrenta do Maligno. Mas percebo também que certa faceta desse relato poderia parecer obscura a meu leitor se eu não lhe fornecesse, desde já, algumas informações suplementares. Sobretudo no que tange à indulgência do capitão Barberi para comigo, indulgência que, e só ela, pode explicar minha presença no coração dessa tormenta. Ela se devia, sem dúvida, ao fato de que meu pai foi por treze anos o xerife de Roma, tendo assegurado, durante esse período, a paz em toda a cidade. Ele sempre desempenhou sua função com honestidade e competência, tendo resolvido alguns casos delicados – os tempos não eram melhores do que agora –, que outros em seu lugar, sem dúvida, teriam abandonado. Até a população acabara por confiar nele. Mas, numa manhã de 1511, quando perseguia um criminoso, ele entrou na estalagem do Cão, no Campo dei Fiori. Nunca se soube exatamente o que aconteceu ali. Um tiro foi disparado, e meu pai caiu morto no meio das mesas. Seu assassino conseguiu fugir por uma janela. Ao lado de meu pai se encontrava o fiel Barberi, então seu ajudante, que nunca perdoou a si mesmo por não ter conseguido defendê-lo. Eu acabava de completar dezoito anos. Minha família não tendo fortuna alguma – prova suficiente da integridade de meu pai –, minha mãe teve de deixar a bela casa do Campo de Marte e nos instalamos, ela e eu, no modesto alojamento da Via del Governo Vecchio. A partir de então, ela me proibiu de seguir a carreira das armas a que eu aspirava. Perdera o pai, não queria perder o filho também. Resolvi então me tornar médico e me inscrevi na universidade da cidade onde grandes professores como Bartolomeo de Pisa e Accoramboni de Perúgia, ambos ligados ao serviço do papa, ministravam seus cursos. O ensino me agradou e creio ter me tornado depois um médico bem razoável. Mas essa não é a questão. Nos três anos que se seguiram, Barberi permaneceu muito próximo à nossa família, tomando a seu encargo minha educação e meu conforto até mais do que seria necessário. Certo inverno, chegou mesmo, sem dizer palavra, a pagar as contas de nossos fornecedores até que minha mãe recebesse a pequena herança a que tinha direito. Não seria exagero dizer que ele se sentia em débito pela morte de meu pai. Daí, creio, aquela fraqueza que o levaria a me deixar agir à vontade e mesmo, às vezes, a fazê-lo em seu nome : ele desempenhou um papel fundamental na guinada que minha vida deu naquelas semanas. 2. A notícia do assassinato logo se espalhou pela cidade. Um após o outro, os bairros de Santo Eustáquio, Parione, Ponte, e mesmo do Borgo, para lá do Tibre, começaram a fervilhar de boatos insensatos. Falava-se de uma orgia no Palácio Marcialli, de uma batalha entre clãs rivais, de uma farsa macabra que teria acabado mal. Não que em Roma corresse pouco sangue : a história da cidade era um longo desfile de combates, de confrontos e de ódio. Em primeiro lugar, as grandes famílias – os Colonna, os Orsini, os Frangipani – sempre se mataram uns aos outros por uma rua ou por um palácio. Os próprios papas, quando voltaram de Avignon, tinham tido de pegar em armas para restabelecer um poder que o povo não lhes reconhecia mais. Depois, foram as guerras, tão numerosas quanto incompreensíveis. Um dia contra Veneza ou Florença, no outro, para afastar os alemães ou os espanhóis, ou, ainda, para se defender dos franceses – o mais das vezes, aliás, para se defender dos franceses. Até esses últimos vinte anos, que se revelaram fecundos em crimes, sobretudo sob o papado de Borgia. Envenenamentos, punhais, arcabuzes : o nascimento deste século foi feito a machado. Mas, naquele 20 de dezembro de 1514, os romanos reagiram como se o assassinato da coluna significasse outra coisa. Eles compreenderam – sabedoria da massa – que o que mais importava ali era a maneira de exibir a morte e não o fato de causá-la. O assassino – ou os assassinos –, expondo seu malfeito daquela maneira, lançava um desafio à cidade inteira. Quanto a mim, voltei para a casa de minha mãe, que logo percebeu minha agitação. Ela me interrogou para saber aonde eu fora tão cedo, e a que ponto eu estava envolvido no caso. Minhas respostas evasivas arrancaram-lhe os mesmos suspiros que lhe arrancavam outrora as palavras tranquilizadoras de meu pai : ela temia por mim como temera por ele. Vesti-me às pressas para ir aos cursos da universidade. Uma boa parte da tarde, tivemos de aturar um médico de Metaponto, que nos explicou, com muitos gestos, os ataques de saltos que testemunhara na região de Taranto : famílias, por vezes aldeias inteiras, dançavam furiosamente, sem razão aparente e sem distinção de idade ou gênero. Os doentes só paravam sua sarabanda quando caíam no chão, extenuados, com as barrigas tão inchadas que era impossível reduzi-las apertando-as com bandagens, ou mesmo subindo sobre elas. Alguns dentre eles morriam em atrozes convulsões, com a boca cheia de espuma. A maioria escapava assim que ouvia uma música suave o suficiente para ordenar seus movimentos e regular seus humores. A picada da tarântula, acrescentou o médico, normalmente aceita como a causa do mal, podia ser combatida, quando ainda estava recente, pela retirada do veneno por aspiração, com a ajuda de um grande pedaço de palha. Ele fez uma demonstração que poucos de nós teriam coragem de reproduzir : o veneno da tarântula sendo tão malfazejo para a boca quanto para o corpo, parecia-nos que aquilo era matar o médico para curar o doente. Quando finalmente soaram as vésperas e pude escapar, corri direto para o hospital Santo Spirito, que domina a margem direita do Tibre. Sisto IV o reconstruíra inteiramente trinta anos antes para acolher os filhos abandonados das mulheres de má vida. Paralelamente a essa obra de caridade – havia também uma fundação que oferecia um dote às órfãs quando se tornavam adultas –, o hospital servia de necrotério para os cadáveres de indigentes e oferecia ainda, adjacente à sala dos feridos, uma grande peça para dissecações. Foi lá que a infeliz vítima da coluna foi posta até que se soubesse mais sobre ela. Eu conhecia bem o lugar, por ter assistido ali a duas dissecações feitas por um dos meus professores. Guardara delas, aliás, uma lembrança bastante desagradável – mais pelo cheiro do que pela visão –, mas essas sessões constituíam um elemento indispensável de nosso aprendizado, sendo ainda mais preciosas pela sua raridade : a Igreja velava ciosamente para que só se profanassem corpos vis, essencialmente aqueles dos condenados à morte e dos prisioneiros. Hoje, a instituição se tornou mais flexível, e para mim, que depois vim a ensinar na universidade, nunca faltou matéria-prima. Mas estou me desviando do assunto. Depois de ter conversado com o soldado de sentinela diante da porta, entrei na sala de dissecação. Fui logo invadido pelos vapores de cânfora e de incenso que ali reinavam e surpreendido pelo número e pela importância das pessoas que ali se encontravam. Lá estavam o comendador da Ordem de Santo Spirito, o decano do hospital, o Mestre das Ruas Vittorio Capediferro, que conversava baixinho com o capitão Barberi, e vários médicos que trabalhavam no hospital. Estavam todos reunidos em torno da mesa de pedra sobre a qual repousava o cadáver, examinando-o com ares circunspectos. Atrás deles, encostado numa parede, um velho de barba longa e cabelos brancos olhava-os. Minha chegada, sem dúvida graças a minhas roupas de médico, não perturbou o cerimonial. — Meio dia – dizia um –, não muito mais do que isso. — Talvez – respondia outro –, mas observe como a carne está tumeficada aqui e como a equimose se espalhou sob o pescoço. Ele pode ter morrido na tarde ou mesmo na manhã de ontem. — Teríamos de incisar o abdômen para saber o estado das vísceras – propôs o terceiro. – Então teríamos algumas certezas. — Nem pensem nisso – interviu a voz nasalada do comendador. – Esse homem já sofreu o suficiente quando vivo para que o torturemos depois de morto. Enquanto ignorarmos seu nome e seu nascimento, não permitirei que seja entregue às lâminas de vocês. Os médicos baixaram os olhos, como se tivessem proferido algum absurdo. O capitão Barberi, então, avançou um passo em direção ao comendador e apontou para o velho encostado na parede : — Excelência, o Mestre Leonardo da Vinci nos dá a honra de sua presença hoje. O senhor já o autorizou, anteriormente, a conduzir suas pesquisas neste hospital. O decano e eu pensamos que seu grande conhecimento do ser humano poderia servir à verdade. Vittorio Capediferro ergueu os ombros : — Sem desmerecer o talento de messer Leonardo, não vejo muito bem o que um artista poderia nos ensinar sobre as coisas da morte. Era o Mestre das Ruas que falava assim, ou seja, o superintendente das ruas, praças e pontes de Roma, função que naturalmente o levava a participar da investigação. Normalmente, Roma contava com dois mestres das ruas, mas o segundo acabara de morrer e ainda não fora substituído. O Comendador do Santo Spirito, a mais alta autoridade do hospital, pareceu hesitar um instante entre a contrariedade que haveria em associar um civil às investigações e o inconveniente de irritar um dos homens mais ilustres da Itália, protegido pelo próprio irmão do papa. — Está bem – suspirou ele enfim –, se a polícia assim deseja... Que messer Leonardo faça como quiser, desde que o corpo não seja profanado. Saiu então sem um olhar para mim, seguido de Vittorio Capediferro, que não apreciara ter sido contrariado em público. Barberi me viu nesse momento e, enquanto os médicos davam passagem para Leonardo da Vinci, aproximou-se de mim. — É realmente o da Vinci ? – murmurei. — Ele mesmo. Costuma vir a Santo Spirito várias vezes por semana, para seus desenhos de anatomia. O decano tem seu trabalho em altíssima estima. — Meu pai também gostava muito dele. Uma vez, quando tinha dez anos, fui a Florença e vi seu projeto de afresco para o Palazzo Vecchio. Fiquei muito impressionado. — Esperemos que ele possa nos ajudar neste caso, que está parecendo complicado para diabo. — Nenhuma testemunha se manifestou ? — Nenhuma verdadeira testemunha, em todo caso. E com aquelas fantasias de festa, duvido que o assassino tenha mostrado sua verdadeira face. — Mas Flavio disse que ninguém poderia ter entrado ou saído da coluna sem ser percebido. — No entanto, parece que foi o que aconteceu. Ficamos em silêncio, meditando sobre esse prodígio, até que uma ideia atravessou meu espírito : — Capitão, estava me perguntando... O senhor me deixaria voltar à coluna ? Ele me encarou com uma intensidade particular, como se estivesse vendo e ouvindo outra pessoa que não eu, depois sacudiu a cabeça : — Desde que prometa não dizer nada à sua mãe. Mas há um arqueiro diante da porta ; para passar, teria que lhe mostrar alguma coisa. Espere... Tirou do bolso um pequeno selo de prata preso a uma correntinha que trazia gravada a insígnia da capitania, uma espada erguida sobre um cavalo, e me entregou. Enquanto isso, Leonardo ia e vinha em redor do cadáver, usando a água do tanque para limpar seus membros, pedindo que o ajudassem a virar o corpo, inspecionando cada detalhe com atenção e murmurando palavras inaudíveis. Depois de alguns minutos, dirigiu-se ao decano, com uma voz segura mas um pouco distante. — Penso, como seus médicos, que este homem foi morto ontem à noite. O que não consigo explicar, no entanto, é este golpe de adaga no meio das costas. — Um simples golpe de adaga o perturba mais do que essa odiosa decapitação ? – perguntou o decano. — A decapitação em si não apresenta nenhum mistério, se me permite dizê-lo. A vítima foi amarrada pelos punhos e pelos tornozelos, há diversas marcas de apertões na pele. O assassino apoiou então a cabeça sobre um toro de madeira ou algo do gênero e a cortou com um machado. O golpe foi dado obliquamente, como o demonstra a secção enviesada do colo, provavelmente porque o lugar não era alto o suficiente. Sem dúvida, a exiguidade da coluna. — Mas o infeliz não teria se debatido ou gritado ? — Não se tivesse sido drogado antes. Infelizmente, como foi dito há pouco, só o exame das vísceras ou da boca poderia nos dar algumas certezas. Mas, de qualquer jeito, não sobre a adaga... — Mas você não acha que ele poderia ter sido morto com a adaga antes de ter sido decapitado ? – sugeriu o capitão Barberi. — Justamente : não, e é isso que é estranho. O golpe de adaga foi dado depois da morte. O sangue não jorrou ao redor da ferida, sinal de que o corpo já não estava mais sendo irrigado quando os vasos foram seccionados. Nosso homem já estava bem morto, e mesmo frio, com toda certeza. — Então isso realmente não faz sentido – deplorou o decano. — Para nós, não – respondeu Leonardo com um tom grave. – Mas se conseguíssemos vislumbrar o sentido que o assassino deu a esse gesto, imagino que estaríamos próximos de desmascará-lo. Lembro a que ponto a justeza dessa reflexão me impressionou, sem que eu me desse conta do quanto ela se revelaria clarividente, em seguida. Foi talvez ela, aliás, que me incitou a seguir Leonardo quando o capitão e o decano terminaram de interrogá-lo : pareceu-me que não podia perder a oportunidade de conhecer um personagem tão importante, cuja inteligência, coisa rara, fazia jus à reputação. Dei cinco passos atrás dele, indo da sala dos feridos para a dos febris, passando entre os leitos dos doentes e os frades atarefados, sem conseguir me resolver a abordá-lo. Uma vez no patamar do hospital, fiz um grande esforço e o chamei : — Mestre... — Ah ! – exclamou ele sem se virar. – Estava me perguntando quando você se decidiria, rapaz. — Quando eu... Ele me interrompeu sem diminuir o passo : — Você está me escoltando desde a sala de dissecação. Você apareceu lá mas não fez nada, ficou cochichando com o capitão de polícia. Decididamente, você é um senhorzinho bastante curioso. — Perdoe-me, Mestre, eu não queria... Ele parou bruscamente, e pude, enfim, examiná-lo de perto. Era um velho muito bonito, os traços finos, embora um pouco pesados por causa da idade, a boca regular, o nariz marcado e voluntário, os olhos de um azul intenso e muito vivos, capazes de atravessar você sob a moita das sobrancelhas. Olhos que viam longe, no coração e no espírito. Sua fronte era lisa – aquela fronte que concebera tantas maravilhas ! –, e os cabelos desciam-lhe das têmporas em cascata, misturando sua brancura à brancura ondulante da barba. Ele me fazia pensar irresistivelmente num daqueles patriarcas da Bíblia... Andava ereto, quase tão alto quanto eu, envolto confortavelmente em sua peliça, numa roupa elegante em tom de açafrão. Sua imponência, o gênio que ele era, devo confessar que tudo isso me deixou paralisado. Ele achou divertido : — E então, não tem mais nada a me dizer ? De que lhe serve essa fantasia de médico se você fica assim apalermado quando o olham nos olhos ? E antes de qualquer coisa, em que ponto está de seus estudos ? — Eu... Sou bacharel desde o ano passado... — Bacharel... Três, quatro anos de medicina ? Bah ! A corrupção de seu julgamento já deve estar bem avançada. Guarde isto, meu jovem : é preciso escutar menos os doutores e mais a natureza, ela não vende nem seus conselhos nem seus remédios. Eu estava completamente mudo. Ele percebeu meu embaraço e mudou de tom. — Desculpe, não queria ofendê-lo. São todos esses charlatões do hospital, tão cheios de seu saber e incapazes de raciocinar. A observação e a experiência, eis o que lhes faz falta ! E se acham no direito de dar ou negar autorizações a mim, Leonardo da Vinci ! — Os médicos são como os homens – arrisquei. – Há os bons e os maus... — Talvez, talvez... Mas os últimos são mais numerosos. O que nos traz de volta a você, meu jovem... você parece ter espírito suficiente para ser do primeiro grupo. Por isso, repito minha pergunta : por que está me seguindo ? — Eu... eu queria falar com o senhor. — Falar comigo ? Ah ! E sobre qual assunto ? — Eu... Eu não sei... Simplesmente falar-lhe. — Que bela razão ! Suponho que deva ficar lisonjeado. Mas pelo menos você poderia me dizer seu nome, para que fiquemos em pé de igualdade. — Chamo-me Guido Sinibaldi, filho do xerife Vincenzo Sinibaldi. — Filho do xerife ? Pensava que não havia mais xerife em Roma. É a pedido de seu pai que você está aqui ? — Meu pai morreu em 1511, foi o último a exercer esse ofício. Assassinaram-no... — Lamento muito... Você... Você não acha que esse assassinato teria alguma relação com... — De modo algum. Acontece simplesmente que, como ele, sou apaixonado por enigmas. Se minha mãe não tivesse se oposto, eu teria seguido sua carreira. — Sábia mulher ! Basta um assassinato numa família... Mas vamos andando. Está frio, e a imobilidade é nociva para um homem da minha idade. Andamos então pela beira do Tibre até a Ponte Quattro Capi e a ilha Tiberina. A conversa foi se soltando, e o mestre me fez saber que estava em Roma havia um ano e meio, residindo no Belvedere, perto do palácio pontifical. No entanto, ele não parecia realmente satisfeito com sua sorte : a glória de artistas mais jovens, cujo talento não desconhecia, estava a ponto de eclipsar a sua. Nem o papa Leão X, nem Giuliano de Médici, seu verdadeiro protetor, confiavam-lhe trabalhos de envergadura. Ele, cujo pincel transformara a pintura. Ele, cuja imaginação concebera as máquinas mais loucas – para andar sob a água ou voar pelo céu –, ele, cujo gênio sonhava em construir cidades e portos, ele, que tinha sido o primeiro na corte de Milão, sofria por não ser mais que um segundo na do papa. Eu lhe falei de minha admiração pelos esboços da batalha de Anghiari, que deveriam decorar o Palazzo Vecchio em Florença e que eu vira quando tinha dez anos. Mas, se por um lado o cumprimento o agradou, por outro, reavivou nele um curioso sentimento de fracasso : de fato, na época não pudera concluir o afresco por não ter utilizado um revestimento suficientemente estável. As cores se diluíram, e a batalha se desfizera. “Mais uma obra inacabada”, resmungou. Subimos de volta para o bairro Santo Eustáquio, onde da Vinci tinha um compromisso – era lá que ficava o palácio de Giuliano de Médici – e, enquanto a noite e um leve nevoeiro caíam, nossa discussão voltou por si mesma ao assunto que me preocupava. — O senhor tem alguma ideia sobre a razão desse crime, mestre Leonardo ? Ele fez um gesto vago, como se não tivesse tido tempo para pensar nisso : — E eu é que sei ? Dizem que havia uma inscrição, mas... — Sim, escrita com o sangue da vítima : “Eum qui peccat...”. Sei, eu a vi. — Você a viu ? — Fui mesmo eu que a descobri. O senhor percebeu, sou bastante ligado à família Barberi. Flavio, o filho do capitão, veio me procurar assim que teve conhecimento dos fatos. Mas estou pensando... O senhor gostaria de ver essa inscrição com seus próprios olhos ? — Eu ? Seu olhar se iluminou. Acredita que me deixariam entrar ? Fiz que sim com a cabeça, orgulhoso por poder lhe servir de guia. Tomamos então a direção da coluna, o que não representava um grande desvio, e eu apertei meu capuz contra as orelhas. A umidade se juntava agora ao nevoeiro que envolvia a cidade. Os muros das ruelas ao redor pareciam fantasmas, e continuamos em silêncio, cuidando para não escorregar nas lajotas e na terra molhada. Quando chegamos ao Palácio Marcialli, não se via mais nada a dez passos. Só a luminosidade das tochas nos permitiu distinguir a base da coluna e entrever o arqueiro que vigiava seu acesso. Ele saltava para a esquerda e para a direita para se esquentar. — Quem vem lá ? – gritou. — Fomos enviados pelo capitão Barberi – respondi. – Sou Guido Sinibaldi e aqui está messer Leonardo da Vinci. — O que vocês querem aqui a esta hora ? Mostrei-lhe o selo da capitania, que ele reconheceu à luz alaranjada da chama. — Gostaríamos simplesmente de entrar na coluna para examinar a inscrição. Precisaríamos também de uma de suas tochas, se não se importar. Ele aquiesceu lentamente e pegou o molho de chaves em seu cinto. Frio ou inabilidade natural, foram-lhe necessários dois bons minutos para acionar a lingueta da fechadura. O interior da coluna me pareceu mais gélido do que um túmulo, e o odor de salitre, mais sufocante ainda do que pela manhã. Entrei primeiro, com a tocha na mão, subindo um degrau da escadaria para permitir a Leonardo me seguir. Este avançou cautelosamente, inspecionando o chão como se procurasse alguma coisa. Viu o sangue misturado com a terra, recolheu um punhado, cheirou e fez uma careta estranha que eu não soube interpretar. Interessou-se, a seguir, pela cavidade na base da escada e ficou um momento considerando-a, enquanto o guarda nos lançava olhares intrigados. O mestre pegou então a tocha e iluminou, um a um, os dez primeiros degraus da escada, onde haviam secado horríveis rastros avermelhados. — Ali ! – disse, designando o maior deles, na curvatura da espiral. Foi nesse degrau que ele teve mais altura. A pedra estava de fato manchada de sangue e mostrava um entalhe, como a marca de uma arma cortante. — Um só golpe – prosseguiu. – Após o que ele esperou sua vítima se esvaziar de sangue antes de lhe enfiar a adaga nas costas e carregá-la até a estátua. Sem dúvida, ele até participou da festa durante todo esse tempo... Que carnificina ! Ele assobiou de repulsa e me perguntou onde se encontrava a inscrição. Empurramos a porta para ver melhor. Ficar fechado assim, como ficara o decapitado, me deu um arrepio. Leonardo se aproximou da parede : a sinistra mensagem se pôs a dançar à luz vacilante de nossa tocha. — “Eum qui peccat...”, ele leu, destacando cada sílaba. Escrito com sangue, não há a menor dúvida. Você deve dizer ao seu capitão para interrogar as testemunhas a respeito de algum convidado que estivesse com um machado em sua fantasia. Um machado com o qual ele não estava no início da festa, por exemplo, mas que teria ostentado depois. Ou o contrário. Você também lhe dirá... Ele hesitou um segundo e me olhou com o canto do olho : — Você também lhe dirá para se informar sobre um jovem aprendiz que tenha desaparecido nos últimos dias. De um ateliê de pintura ou de tecelagem... Eu... eu... acho que me esqueci de assinalar alguns vestígios de azul – oh, vestígios ínfimos ! – que o cadáver tinha sob as unhas. Poderiam ser de tinta ou de tintura. Que o capitão queira me perdoar esse esquecimento : foram os médicos do hospital, me deixaram nervoso. Aliás, pensei que eles fossem reparar nisso. Além disso... Parou para contemplar novamente a inscrição. — Além disso ? — Pois bem ! Além disso, esta tarde, examinando... examinando o traseiro da vítima, concluí... concluí que ele devia manter relações carnais com pessoas do mesmo sexo. — Pessoas do mesmo sexo ? ! Minha surpresa não era fingida, ainda mais que messer Leonardo se exprimia com certo constrangimento. — Sim, sendo médico, você imagina o que isso significa... esse jovem provavelmente vendia seu corpo. Conduta encontrada às vezes entre os aprendizes mais modestos. Daí a ideia dos ateliês de que eu falava antes. Sua dedução me empolgou, mas sua hesitação me perturbou : — Se pensou nessas coisas, por que não falou para o decano e para o capitão ? — Naquele momento, não pensei que isso pudesse ser útil para a investigação. — E agora ? — Agora... as coisas são diferentes. Muito diferentes. Olhe bem essa inscrição. O que vê ? — Três palavras, as mesmas que de manhã : “Eum qui...” — É claro – me interrompeu ele. – Mas o que mais ? Como você acha que o assassino as desenhou ? — Com seu dedo e o sangue da vítima, acho. — Com seu dedo, excelente ! Ora, o dedo é um péssimo pincel... Observe como ele fez. Olhei para a parede com mais atenção e, por fim, entrevi o que ele me mostrava : o assassino precisaria que molhar seu dedo no sangue diversas vezes para chegar ao fim de seu epitáfio. As letras E, Q, P e o segundo C estavam mais fortes, como se tivessem sido escritas com uma matéria mais abundante : “EUM QUI PECCAT...”. Mas ainda não conseguia entender aonde ele queria chegar. — E daí ? — Examine com atenção as reticências. Depois do T de PECCAT, ele teve de molhar o dedo de novo para poder traçá-las. No entanto, aparentemente, esses pontinhos não alteram o sentido da mensagem : “Aquele que peca” significa sem dúvida que a vítima tinha se conduzido mal – o que, diga-se de passagem, poderia se aplicar a um jovem de costumes desviados –, e que o assassino a castigou. No entanto, ele se deu ao trabalho de molhar de novo o dedo para acrescentar estes três pontinhos no final. Por que razão ? Por que razão, senão para dar a entender que haveria uma sequência para o seu gesto ? Estes três pontos não estão ali por acaso, Guido, não. Eles servem de aviso. O assassino certamente pretende recomeçar e resolveu nos avisar. Eis por que os detalhes deste caso me parecem importantes, de agora em diante. Eis por que lhe entrego tudo o que sei. Fixou seu olhar no meu : — Não se trata mais apenas de explicar um assassinato, meu jovem amigo... Trata-se, provavelmente, de impedir que outro aconteça ! Suponho, hoje, que tal presságio devia ter me apavorado. Para minha grande vergonha, devo admitir que me fascinou. 3. Passaram-se menos de três dias até que eu voltasse a ver o mestre no Belvedere. Nesse intervalo, fui várias vezes à Casa de Polícia próxima ao Panteão para repassar ao capitão as deduções de Leonardo sobre a vítima e sobre as intenções do assassino. Para minha grande satisfação, Barberi não se mostrou zangado com o atraso dessas informações, animado como estava pela busca da verdade. Ele mandou então que seus homens interrogassem novamente as testemunhas, a fim de saber se na festa havia alguém com um machado ou algum objeto desse tipo. A resposta chegou após um dia inteiro de investigações : uma prima dos Marcialli, Violetta Melchioro, disse ter notado um indivíduo que podia corresponder a esses sinais. Sua certeza provinha, explicou ela, de seu amor pelos pássaros. Ela própria tinha escolhido para aquela ocasião uma máscara de papagaio que encomendara de um artesão do Trastevere, dando-lhe como modelo o casal dessas aves que o embaixador de Portugal oferecera a Leão X na primavera. Os convivas, garantiu ela, ficaram deslumbrados. Como quer que fosse, no início da festa ela se divertira saudando todos os convidados que, como ela, ostentavam uma máscara de pássaro, improvisando uma espécie de confraria das penas numa assembleia onde reinava o pelo. Um convidado, no entanto, permanecera surdo a essa brincadeira, recusando-se a responder com uma só palavra. Ele usava uma linda cabeça de poupa, aquela estranha ave migratória cinza, com um longo e curvo bico negro e um topete sedoso por cima. Vestia, além disso, uma estranha roupa mourisca em tom granada e grandes luvas escuras que cobriam suas duas mãos. Mas o essencial não estava aí. Violetta Melchioro lembrava-se de tê-lo visto com uma espada na cintura no início da noite, ou ao menos com uma bainha, não tinha certeza, ao passo que, no fim da noite, ele aparecera com um machado. Disso ela estava certa. Chegara até a interrogar seu primo Marcialli sobre a identidade de um personagem tão estranho, mas o dono da casa não soubera informá-la : o prazer do uso das máscaras residia, para ele também, na ignorância dos nomes. Além disso, segundo sua própria confissão, qualquer um com uma fantasia daquela qualidade poderia ter entrado no baile mesmo sem ter sido convidado. As revelações da signora Melchioro puseram a Casa de Polícia em polvorosa. Uma espada no início da noite – a adaga encontrada nas costas da vítima ? –, um machado a seguir... Com toda a evidência, aquele era o assassino. Ele se imiscuíra na festa do Palácio Marcialli, se introduzira de alguma forma na coluna, cometera o crime e, depois, aproveitando a escuridão, içara o corpo até a estátua do imperador. Encorajado por seu sucesso, saíra sem ser visto e exibira um machado recém-limpo do sangue de sua vítima. Tanta audácia se, por um lado, chegava a aturdir, por outro, podia se voltar contra seu autor : bastava descobrir quem se escondia sob a máscara de poupa ou encontrar o artesão que a confeccionara. Este forneceria, sem dúvida, indicações suficientes para que se chegasse ao assassino. O caso parecia se tornar menos incerto... No entanto, não tardou a vir o desencanto. Uma nova escuta das testemunhas confirmou a presença de um mouro com cabeça de poupa, mas ninguém sabia quem ele era, nem sequer escutara sua voz. Junto aos artesãos, as investigações não foram mais proveitosas. Todos os fabricantes de fantasias de Trastevere, Parione e outros bairros foram interrogados, mas nenhum deles recebera a encomenda de uma poupa ou de algum pássaro semelhante. A máscara devia ser antiga, ou fora confeccionada em outra cidade. Em suma, na noite do segundo dia após as revelações da signora Melchioro, a investigação patinava novamente. Na manhã do terceiro, um fato importante aconteceu : um bilhete impresso foi colocado, durante a noite, embaixo da porta do Mestre das Ruas, Vittorio Capediferro, mas este se encontrava em Ostia, onde sua mãe acabava de falecer. Foi um criado que o recolheu e teve a presença de espírito de levá-lo às autoridades. O bilhete estava redigido assim : Jacopo Verde perdeu duas vezes a cabeça ** A Via Sola está vazia e a cidade em festa. Não era preciso ser um grande adivinho para perceber a alusão à coluna. O capitão Barberi, acompanhado de sua tropa, foi então até a Via Sola, atrás da Piazza di Sciarra, um dos bairros mais mal frequentados de Roma. Não foi preciso muito tempo para que seus homens ficassem sabendo que, de fato, um homem chamado Jacopo vivia nas redondezas, e o quarto que ele ocupava numa daquelas casas sórdidas logo foi aberto. Infelizmente, não havia ali mais do que um baú vazio, restos de vela e alguns objetos de uso masculino num estado lamentável. A proprietária, por sua vez, não se fez de rogada para contar o que sabia : seu locatário alugava aquele quartinho havia pouco menos de um ano e lhe pagava um quattrino por semana, preço exorbitante, considerando-se que a única janela dava para um terreno baldio coberto de estrume. Chamava-se Jacopo Verde, era originário de Avezzano e tinha cerca de dezenove anos. Seu pai o enviara a Roma para estudar o ofício de pintor com um de seus amigos, o Mestre Ballochio. Mas o trabalho não parecia ser o forte de Jacopo, já que resolvera fugir do ateliê e nunca mais voltara lá. Desde então, ele vivia de bicos, trabalhando por dia com este ou aquele artesão. Perguntada se ele recebia pessoas, a proprietária respondeu que em sua casa as visitas eram proibidas, mas que acontecia de alguns homens esperarem Jacopo do outro lado da rua. Dito isso, jamais procurara descobrir quem eram aqueles senhores, embora parecessem maduros demais para serem seus amigos. E afinal, desde que lhe entregasse seu quattrino toda segunda-feira, pouco lhe importava a maneira como o ganhava... Quando vira o rapaz pela última vez ? Segunda-feira, afirmou ela, quando ele pagou a semana – na véspera da festa no Palácio Marcialli. Desde então, nenhuma notícia. Restava-lhe um dia para dar as caras, senão, o quarto seria limpo e posto novamente para alugar. Quando estas últimas informações chegaram a meus ouvidos, fiz de tudo para ser convidado à casa dos Barberi. Naquela mesma noite, reunimo-nos em seis à volta da mesa familiar – contando com a mãe e as duas irmãs de Flávio –, e a janta nos foi servida sem cerimônia, leve como convinha a poucos dias do Natal. Depois de uma sobremesa de compota de cidra, esperamos que as mulheres fossem para seus quartos para voltar a falar dos acontecimentos do dia. O capitão não se opôs a narrá-los para mim e, em seguida, confiou-me alguns de seus sentimentos : — Para lhe dizer tudo, acho que foi mesmo esse tal de Jacopo Verde que morreu na coluna. — Tem certeza ? — Quase : as roupas encontradas no quarto correspondem exatamente ao tamanho do morto. Poderia jurar que foram cortadas para ele... Além disso, há as atividades escusas às quais ele se entregava : com toda a evidência, o assassino pode atrair um jovem prostituído mais facilmente do que um rapaz de bons costumes. A mensagem na parede parece mesmo provar que foi por esse gênero de má conduta que ele foi castigado... Quando tivermos encontrado o pintor que empregava Jacopo ultimamente, estou certo de que saberemos por que havia aquela tinta azul embaixo das unhas do cadáver. Não haverá mais, então, nenhuma dúvida quanto a sua identidade. — E por que o assassino teria cortado sua cabeça ? Antes de responder, Barberi terminou o copo de vinho branco que tinha à sua frente. — Essa não é uma questão simples, Guido. Ontem, eu provavelmente teria respondido que se tratava de impedir que ele fosse reconhecido : o nome da vítima permite, muitas vezes, que se chegue ao do assassino. Mas depois desse bilhete... — Você acha que foi o próprio criminoso quem o redigiu ? — Não sei. Em todo caso, seria algo extraordinário. Afinal, para que tornar um corpo irreconhecível e depois revelar sua identidade ? — Talvez ele quisesse dar um exemplo para os pecadores ; para isso, julgou indispensável que todos soubessem da natureza do pecado. — Acha que o assassino tinha por alvo os sodomitas ? Flavio e o pai soltaram uma grande gargalhada. — Ele terá um bocado de trabalho ! E com certeza escolheu a cidade certa ! — Sem dúvida – continuei. – Mas isso nos forneceria o início de uma explicação para essa mensagem. — Se ele for realmente seu autor ! Pois, apesar de nossos interrogatórios, qualquer um pode ter surpreendido o assassino saindo da coluna. E qualquer um pode ter escrito esse bilhete. — É verdade. Mas se é para denunciar alguém, não seria mais simples entregar o carrasco e não a vítima ? Meu argumento pareceu surtir efeito. O capitão da polícia parou aos poucos de rir. — Sua observação é pertinente, Guido. No entanto, ainda estamos longe demais da verdade para conseguir captar seus meandros. Aquele que redigiu o bilhete pode estar querendo nos orientar sem se prejudicar. Ou seja, sem se comprometer aos olhos do culpado. Talvez tema uma vingança, quem sabe ? Isso explicaria por que o bilhete foi impresso e não escrito à mão. — Essa misteriosa testemunha estaria com medo de que sua grafia nos levasse a ela ? — É uma possibilidade como as outras. — Mas o tipógrafo que executou esse trabalho certamente se lembrará de quem o encomendou ! Um serviço desses não é nem um pouco comum ! — Certamente, mas há cerca de cinquenta tipógrafos na cidade e basta que um deles minta para nós por ter sido bem pago. Parece que os indícios que se acumulam nesta investigação em vez de nos levar para a pista certa só fazem multiplicar as possibilidades. Os fabricantes de máscaras, os pintores, os prostituídos, os homossexuais, os tipógrafos, daqui a pouco teremos de interrogar toda a população de Roma ! — E quanto às chaves da coluna, conseguiu descobrir alguma coisa ? — O pessoal do Castelo de Santo Ângelo não percebeu nenhum roubo ou arrombamento. E acredito que o oficial das chaves seja honesto. — Então o assassino deve ter o poder de atravessar paredes... — Não, é claro que não. Mas esse enigma encontrará sua solução na hora devida. Enquanto isso... Ele se levantou. — É tarde, e estou cansado... vou me deitar. Vocês deveriam fazer o mesmo. Dirigiu-se à porta, mas voltou-se por um momento : — Ah ! E se passar na polícia, Guido, lembre-se de levar o selo da capitania. — Amanhã sem falta, capitão. Prometo. Despedi-me de Flavio e me retirei. Alguns minutos depois, chegando em casa, percebi uma carta sobre a mesa deixada por minha mãe. Era de Leonardo e pedia para que eu o visitasse no dia seguinte. ** Em italiano, testa. (N.E.) 4. Nunca mais tinha entrado na área do Vaticano desde a morte de meu pai, e foi nele que pensei primeiro, enquanto explicava ao guarda suíço as razões de minha visita. Este não dificultou as coisas e atravessei com passo rápido o Pátio do Belvedere, para me livrar do frio que assaltava a cidade, mas também por medo de não sei que encontro desagradável. Sem dúvida, guardava lembranças dolorosas demais daquele lugar... A casa do Belvedere fora construída 20 anos antes por Inocêncio VIII, no extremo norte da fortaleza pontifical. Ela tinha então a aparência de um grande U, com o telhado ameado. A vista para os montes da Sabina era incomparável. Tendo me informado, sabia que o mestre da Vinci ocupava a maior parte do segundo andar, onde mandara fazer uma boa reforma : o piso e o forro tinham sido refeitos, as janelas, aumentadas para fornecer mais luz, as divisórias tinham sido deslocadas, abrindo espaço para um grande ateliê : vários quartos e uma grande cozinha tinham sido preparados. Fui recebido por um homem de cerca de trinta anos, bastante forte, que me examinou dos pés à cabeça com ar desconfiado. Disse que se chamava Salai. Embora não parecesse surpreso com minha visita, sua atitude refletia uma hostilidade surda que eu não sabia a que atribuir. Conduziu-me, no entanto, até uma grande sala, cujo forro devia estar a quatro metros de altura e onde reinava uma desordem extraordinária. Havia ali grandes mesas cobertas de pilhas de papéis, de desenhos e livros. Vários baús, encostados nas paredes, serviam de suporte a uma quantidade de máquinas de ferro ou de madeira cuja utilidade eu era incapaz de adivinhar. Num canto, uma bancada de preparação de tintas ostentava manchas coloridas e estava cheia de potes com pincéis, penas e bastonetes apontados. No alto, uma engrenagem de polias mantinha suspensa uma espécie de cavalete sobre o qual se via a moldura de um quadro virado para cima. No outro canto da sala, um fogo infernal ardia numa enorme lareira. Hastes de metal incandescente estavam mergulhadas no braseiro, e pensei ter distinguido uma massa de vidro derretido no meio das chamas. Um pouco afastada da lareira, estava disposta sobre um pano, uma coleção de objetos que me fez pensar nos instrumentos cirúrgicos utilizados no Oriente. Realmente, não sabia o que pensar daquela acumulação de objetos, nem do estranho cheiro, mistura de pintura, de substâncias aromáticas e de metal incandescente, que se desprendia do conjunto. Salai logo apontou um banco perto de uma das mesas e me disse para esperar o mestre sem tocar em nada. Lançou mais um olhar de desconfiança e desapareceu por onde tínhamos entrado. Eu estava sozinho no ateliê de da Vinci. Minha atenção foi logo atraída por uma pilha de folhas sobre a mesa. Numa delas, estavam desenhadas duas igrejas com cúpulas de proporções harmoniosas. Pareciam feitas para abrigar anjos delicados. Em outra, figurava um mecanismo complexo, destinado, sem dúvida, a esticar e trançar cordames de barcos – os Médici, pensei, interessavam-se por essa indústria. Uma terceira folha representava sem dúvida o corte de uma árvore brônquica. A disposição dos brônquios que se ramificavam sobre o pulmão me fascinou por sua exatidão e sua precisão. Agora compreendia melhor a reputação de anatomista de que Leonardo gozava no hospital Santo Spirito : a folha parecia ter sido decalcada sobre o próprio órgão. Que progresso representaria para a medicina a publicação de uma série daquelas lâminas ! E quantos dos meus professores perderiam, assim, a oportunidade de oprimir seus alunos ! Ao lado dos desenhos, diversos cadernos estavam cobertos de uma escrita que não conseguia decifrar. Embora acreditasse reconhecer algumas daquelas letras, o conjunto não evocava nada de compreensível, como se as palavras e as frases tomassem emprestado nosso alfabeto para se combinar numa outra língua. Só mais tarde fiquei sabendo que o mestre era canhoto e começava suas frases pela direita, escrevendo as letras ao contrário, de forma que era preciso um espelho para lê-las. Mas, naquele momento, aquilo me deixou bastante desconcertado. Outra coisa estranha : as espécies de enigmas que decoravam a parte de cima de algumas folhas. Traçados em lápis preto, podiam ser vistos, por exemplo, uma nota musical seguida de uma serpente, depois de um pote, depois de uma outra nota e de uma arma de fogo. Embaixo, estavam rabiscados alguns signos, sem dúvida a solução do enigma, ela também expressa na mesma língua desconhecida. Decididamente, da Vinci parecia estar envolto em mistérios. Estava nesse ponto de minhas reflexões quando pensei escutar vozes provenientes de uma sala vizinha. Olhei para a porta, mas não vi nada. Meu olhar se deteve então sobre a segunda mesa, onde um grande baú se destacava ao lado de uma pilha de livros. Por um instante, por um curto instante, pareceu-me que... Apesar das recomendações de Salai, deixei meu banco para observar o baú. Era feito de ébano finamente trabalhado, decorado nas laterais por uma paisagem exótica, talvez africana. Sua tampa era bordada e se levantava imperceptivelmente, como se movida por uma força vinda de dentro. Aproximei a mão, esperando encontrar um desses mecanismos engenhosos dos quais Leonardo tinha o segredo. Mas, em vez disso, tive de sufocar um grito no fundo da garganta. Tinha... Tinha um dragão vivo dentro daquele baú ! Um dragão de verdade ! Um animal hediondo, com dois palmos de comprimento, o corpo brilhante como prata, que erguia para mim os chifres afiados e a cara hirsuta. Pelas frestas da madeira, dois olhos rápidos me encaravam, prontos sem dúvida para me enfeitiçar. Recuei um passo ; a tampa levantava ao ritmo de sua respiração. Da Vinci tinha um animal vindo do inferno ! — Ah ! Vejo que você conheceu ser Piero. A voz do mestre me fez saltar. Ele estava atrás de mim, com uma longa veste branca, e parecia irritado. Dirigiu-se diretamente ao baú. — Ser Piero ? – balbuciei. — Ser Piero, sim, meu lagarto. — Seu la... Abriu a caixa, exibindo à altura dos meus olhos o incrível animal, que não parava de abrir e fechar a boca. — Um vinhateiro do Belvedere me deu de presente. Vendo seu tamanho e sua aparência, pensei que ele bem podia ser parente de alguma criatura lendária. Então, resolvi vesti-lo a caráter : duas asas de escamas de prata, pelo de bode para o queixo, duas unhas de gato como chifres. Um basilisco bem convincente, não acha ? Vestido de branco como estava, com aquele estranho animal nas mãos... Que espécie de mágico era Leonardo ? — Estou vendo que ser Piero o intimida. Vamos colocá-lo de volta em sua casinha. Sua voz se tornou sombria enquanto guardava o animal. — Não quero que ele escape de novo, como supostamente aconteceu outro dia... — Ele... ele fugiu ? ! – perguntei, assustado só de pensar naquele monstro em liberdade. — É o que parece, em todo caso. Ao entrar nesta sala semana passada, encontrei-o correndo direto para o fogo. A tranca de sua caixa estava aberta. Mais alguns passos e as chamas o devorariam. — Um animal com esse peso e essa força... Talvez tenha escapado sozinho... Leonardo fez que não com a cabeça, enquanto fechava cuidadosamente a tranca. — Infelizmente, acontecem coisas estranhas debaixo de meu próprio teto. Meus papéis mudam de lugar, alguns objetos desaparecem... Sem dúvida, pensam que não percebo nada, ou que estou velho demais. Mas, depois da chegada desses alemães... — Vocês têm alemães aqui ? — Sim, Mestre Johan e Mestre Jürgen. Pelo menos, são chamados assim. Nunca lembro seus verdadeiros nomes. Eles me foram cedidos pelo papa para ajudar em meus trabalhos com os espelhos. Estou de fato trabalhando no projeto de um espelho. Um grande espelho, suficientemente curvo para concentrar os raios do sol e aquecer a água de uma caldeira. De uma caldeira de tinturaria, por exemplo. Mas esses dois imprestáveis passam o tempo bebendo meus ducados e espionando cada um dos meus gestos. — Acha que estão atrás de seu lagarto ? — Estão atrás de mim, isso sim ! Se pudessem roubar minhas invenções... Cheguei ao ponto de escrever tudo em código, por medo de que eles descubram. Agora há pouco, surpreendi Jürgen tramando não sei o quê atrás de minha porta. Tive de ameaçá-lo em sua própria língua para que fosse embora. Mas não me iludo, ele tem a confiança do camareiro. Infelizmente, vai voltar. O velho parecia realmente preocupado com a conduta dos alemães. Lembro-me de ter atribuído isso à idade e à mania de perseguição que costumam acometer os velhos. Pois quem poderia querer mal a um lagarto ? — Mestre, se me permite... Sem dúvida, não foi por isso que me chamou à sua casa... Seu olho, perdido por um momento na distância, fixou-se novamente em mim. Como se uma cortina fosse rasgada, seu rosto voltou a ter uma expressão amável e ele me tomou pelo braço. — Sim, Guido, é claro. Não queria incomodá-lo com meus problemas. Vamos sair desse frio, que tal nos instalarmos ali ? Aproximou um banco da lareira e sentamo-nos lado a lado. — Pedi que viesse aqui porque tenho duas propostas a lhe fazer. Mas, antes, gostaria que me falasse sobre o caso da coluna. O capitão Barberi fez progressos em suas investigações ? — Sim, um pouco. Graças ao senhor. Fiz então o relato o mais exato possível dos últimos dias da investigação, desde as suspeitas que recaíam sobre o mouro com cabeça de poupa até a descoberta do domicílio de Jacopo Verde. Leonardo mostrou-se particularmente atento à descrição do mouro, pedindo que eu a repetisse várias vezes. Então, concentrou-se na mensagem deixada na casa de Capediferro. — Esse bilhete é sem dúvida um novo aviso. Foi enviado pelo mesmo indivíduo que traçou a inscrição na coluna. — Não acha que pode ter sido escrito por um terceiro ? — Uma testemunha temerosa de ser reconhecida ? Isso não faz sentido. Pense no que está escrito : “Jacopo Verde perdeu duas vezes a cabeça. A Via Sola está vazia e a cidade em festa”. Confie em minha experiência, um homem que teme por sua vida não compõe rimas. Desembaraça-se do seu fardo o mais rápido possível, desejando que compreendam logo sua informação. Ora, aquele que mandou imprimir esse bilhete agiu de maneira completamente diversa. Tem controle sobre si mesmo e quer estendê-lo aos outros : diverte-se roteirizando o balé em volta de seu crime. — E por que, então, nos entregar o nome de Jacopo Verde ? — Pela mesma razão que o levou a enfiar sua espada num cadáver já frio. Uma razão que nos escapa e que só pertence a ele. O dia em que entendermos esse enigma, entenderemos também seu espírito. Espero apenas que isso não demore demais. Ficamos alguns instantes contemplando as chamas, cada um com seus pensamentos. Então Leonardo se levantou, vestiu uma luva de couro espesso que estava ao pé da lareira e pegou um dos tições para apalpar a bola de massa em fusão. Considerou a massa translúcida como bom conhecedor e recolocou-a sobre as brasas. — Não está bom. Não, decididamente, não está bom. Talvez precise de um pouco mais de... Então, como se percebesse que eu estava lá : — Ah ! Não me queira mal, Guido, meu espírito se evade facilmente. Esse espelho que estou tentando construir, essas pesquisas de anatomia, de botânica, de arquitetura ou de matemática... Todos esses assuntos, tão diferentes... Às vezes me pergunto se a natureza não me deu tantas curiosidades para me impedir de satisfazê-las. E de penetrar seus segredos. Mas, voltando à mensagem... Em sua opinião, por que ele a deixou justamente na casa do Mestre das Ruas ? Obviamente, eu já refletira sobre aquilo : — Como um desafio, suponho. O assassino poderia tê-la deixado também na Casa de Polícia ou numa das entradas do Vaticano. Ou em qualquer lugar que representasse a autoridade da cidade que, sem dúvida, ele quer enfrentar. Mas, Capediferro estando ausente, ele se arriscava menos deixando-a em sua porta do que na Casa de Polícia ou no Vaticano. Da Vinci meneou a cabeça. — Bem pensado, sim, bem pensado. E por que acha que Jacopo Verde “perdeu duas vezes a cabeça” ? — Se o assassino está perseguindo o vício, não há dúvida de que, em sua opinião, o jovem já perdera a cabeça ao entregar-se à prostituição. Ele então se aplicou a fazê-lo perder uma segunda vez, e definitivamente. — Não lhe falta agudeza, Guido. Se um dia vierem a nomear um novo xerife... Esse elogio, vindo do mestre, me deixou extremamente orgulhoso. — No entanto, vejo outra explicação, se me permite. Bem mais simples... Pois, com toda evidência, Jacopo Verde perdeu de fato duas vezes a cabeça : uma, quando a separaram tão cruelmente de seu corpo ; a outra, quando ela desapareceu da coluna. Penso, portanto, que devemos formular a seguinte questão : por que dar sumiço na cabeça, e onde estará ela agora ? — Pensa que o rosto da vítima poderia nos revelar alguma informação ? — Não devemos negligenciar nada. Mas chega de especulações. A manhã vai longe e ainda não lhe fiz minhas propostas. Virou-se um pouco e começou a falar como um avô a seu neto : — Lá vai, Guido. Pensei que um jovem médico como você precisará de relações e de uma clientela para se estabelecer. O Natal se aproxima, e me parece uma boa oportunidade de apresentá-lo a Giuliano de Médici, que, como você sabe, é meu protetor. Não que ele precise de um médico, apesar de sua saúde frágil : uma nuvem de charlatões já o cerca. Mas ter sua proteção abriria muitas portas para você. E acredito que um só espírito como o seu vale mais para a medicina do que dez outros que conheço e que lhe fazem muito mal. Ora, acontece que, daqui a dois dias, Giuliano dará uma grande festa para celebrar a Natividade. Se quiser me acompanhar, poderá encontrar os homens mais ricos e poderosos da cidade. O resto será com você. Esse sinal de confiança, somado a uma legítima curiosidade, fez com que não hesitasse muito : — Irei com prazer, Mestre. — Perfeito. Quanto à minha segunda proposta, verá que tem a ver com a primeira. Sem ser o pintor oficial do papa, gozo, no entanto, de alguns privilégios aqui. Tenho livre acesso ao Vaticano, especialmente à sua biblioteca. Vou ali com frequência para minhas pesquisas. Qualquer que seja o domínio, religião, ciência ou literatura, seu acervo é um dos mais ricos do Ocidente. Percebi ali, entre outros, alguns tratados de medicina que vão lhe agradar muito. Se nos apressarmos, poderemos trabalhar ali uma ou duas horas sem sermos perturbados : os eruditos não costumam frequentá-la antes do almoço. Seu sorriso se alargou : — Você teve a cortesia de me deixar entrar na coluna, quero retribuir à altura : fazer de você um leitor da Vaticana ! 5. Saindo da residência do Belvedere, encontramos um daqueles que o papa tinha prazer em acolher havia muito tempo : Giovanni Lazzaro Serapica. De origem albanesa, pequeno e magro, a pele amarelada, era ao mesmo tempo o tesoureiro e um dos conselheiros mais ouvidos de Leão X. Seu nome não me era desconhecido, e lembrava que meu pai o citara diversas vezes, mas não sabia se o classificava ou não como um de seus aliados no Vaticano. Leonardo parecia apreciá-lo. Apresentou-nos, mas a evocação dos Sinibaldi não suscitou nenhuma reação visível no financista. Seus pequenos olhos vigilantes me encararam, no entanto, com suficiente insistência para que eu o julgasse astuto e perigoso. Ao nos deixar, apertou minha mão por mais tempo do que o necessário. Um sol gelado banhava timidamente o Pátio do Belvedere. Naquele frio, poucas pessoas circulavam pelo jardim, e o espaço estava amplamente livre até o palácio pontifical. Da saliência onde ficava a residência, tinha-se uma visão geral do conjunto das construções, especialmente dos avanços da obra da Basílica de São Pedro. Viam-se, assim, os quatro pilares centrais e suas arcadas, destinadas a suportar a cúpula, sendo erguidos, assim como o telhado que cobria provisoriamente as tribunas da nave. Comentava-se na cidade que a obra, iniciada, por Giulio II, sofreria um atraso considerável, se não fatal, por falta de dinheiro. Alguns prediziam mesmo que ela seria abandonada, e que a velha Igreja de Constantino, da qual subsistiam ainda pedaços inteiros, seria recuperada. À esquerda, afastada da fortaleza vaticana mas ligada a ela por um caminho elevado, o Passeto, percebia-se a grande torre redonda do Castelo de Santo Ângelo, que dominava o Tibre. Eu tivera a oportunidade de visitar, ali, as masmorras do papa, com Flavio Barberi, graças a uma autorização especial de seu pai. O lugar sinistro e os pobres homens que vi lá deixaram-me uma sensação de mal-estar que ainda perdura. Nada a ver com o sentimento de espaço e de liberdade que emanava dos jardins do Belvedere. O pequeno vale que separava a residência do palácio pontifical, com cerca de quatrocentos passos de comprimento, fora redesenhado pelo arquiteto Bramante. Havia agora dois terraços sucessivos, bem distribuídos e plantados com uma multidão de árvores, principalmente ciprestes e loureiros. Na primavera, os jardineiros tiravam as laranjeiras de suas estufas e acionavam, uma a uma, todas as fontes. Era nessa época que os visitantes se amontoavam no jardim, tanto para usufruir de sua beleza quanto para assistir aos espetáculos ao ar livre que eram apresentados ali. Quando era criança, meu pai costumava me levar para ver essas maravilhas. Naquela época, é claro, o que mais me fascinava era a coleção de animais do papa, no flanco oeste do Belvedere. Vários leões dentro de grandes gaiolas de metal, um urso vindo da Rússia, para o qual fora fabricado um abrigo de pedras, camelos, avestruzes... Gigantescos viveiros, também, onde pássaros coloridos pareciam tocar o céu através dos arames. No inverno, a maioria das gaiolas era desmontada, e os animais, acomodados numa dependência da fortaleza. O próprio Leão X era um apaixonado pelos animais selvagens. O rei de Portugal chegou a lhe oferecer um magnífico elefante branco, cujas façanhas encantavam os bairros da cidade. A mais célebre era aquela cuja vítima fora Barabello di Gaeta. Hoje em dia, esse nome, sem dúvida, não quer dizer mais nada ; naquela época, Barabello di Gaeta era uma espécie de poeta, ao mesmo tempo medíocre e convencido de seu talento. Por favor ou ilusão suprema, acontecia de Leão X recebê-lo em sua mesa – aliás, menos por seu talento do que pelos risos que despertava. Seja como for, o fato é que um dia, Barabello meteu na cabeça que queria ser coroado rei dos poetas no Capitólio. Primeiro, mandou confeccionar para si mesmo um traje de imperador, todo de veludo verde guarnecido com pele de arminho ; depois, obteve do papa autorização para cavalgar em grande pompa seu augusto paquiderme. O elefante logo foi conduzido à Praça São Pedro, suntuosamente enfeitado, e Barabello subiu como pôde na enorme montaria. Uma multidão considerável se reunira para assistir ao acontecimento. Sem perceber que estava fazendo papel de palhaço, o arquipoeta se pôs pomposamente em marcha, acompanhado por um cortejo de gritos, de flautas e de tambores. O que era para acontecer aconteceu, é claro. Atravessando a ponte Santo Ângelo, excitado com todo aquele barulho e movimento, o animal deu uma formidável empinada, lançando por terra os enfeites e o cavaleiro. Conta-se que Leão X, que acompanhava a cena com uma luneta, se divertiu um bocado com as desventuras do poeta. Todas essas coisas me vinham à memória quando Leonardo me puxou pela manga, para desviar meus passos em direção à galeria de Bramante. Essa galeria, que ficava a leste do jardim, ligava o palácio pontifical à residência, e o papa anterior, Giulio II, por ordem de quem ela fora construída, adquirira o hábito de colocar ali suas antiguidades. Por isso a galeria estava repleta de bustos, sarcófagos, inscrições e vasos antigos. — Venha ver este esplendor, Guido – continuou Leonardo, conduzindo-me a um grupo de mármore. – Não é magnífico ? Detivemo-nos diante da estátua mais famosa do Belvedere, a de Laocoonte, comprada a preço de ouro por Giulio II após sua descoberta na casa de Nero dez anos antes. Ela representava o castigo infligido por Apolo ao sacerdote Laocoonte e a seus dois filhos : uma enorme serpente envolvia e sufocava os três homens, que se debatiam. A lenda conta que Laocoonte unira-se carnalmente à sua mulher no templo de Apolo, provocando assim a cólera divina. — Também entre os antigos os deuses eram ciumentos – murmurou Leonardo. Um momento depois, entrávamos na biblioteca Vaticana pelo Pátio do Papagallo. Puxando a pesada porta esculpida, um homem baixinho mas opulento, de cerca de sessenta anos, veio nos acolher com um grande sorriso : — Mestre ! Mestre Leonardo ! Que prazer em vê-lo. — Tommaso, meu amigo, então já voltou de Bolonha ? — Sim, há cinco dias. Mas uma febre maligna me obrigou a ficar de cama. Minha primeira visita esta manhã é para os meus livros. — Este é o Tommaso que conheço ! Guido, apresento-lhe Tommaso Inghirami, bibliotecário oficial do papa, espírito livre e grande amante do teatro. Tommaso, este é um dos meus protegidos, Guido Sinibaldi. Gostaria que você o acolhesse como se fosse eu mesmo. O homenzinho se aproximou de mim : — Guido Sinibaldi ? Você é filho de Vincenzo Sinibaldi, o antigo xerife ? — Sim, senhor. — Eu admirava muito seu pai, meu rapaz, a polícia dele nos faz falta. Especialmente nestes tempos difíceis... Ele sacudiu a cabeça. — Infelizmente, não tive a oportunidade de conhecê-lo melhor : fui nomeado para este posto alguns meses antes de seu... desaparecimento. Sim, tudo isso é muito lamentável. Ele se recompôs. — Mas não quero aborrecê-los com más lembranças. E devo subir daqui a pouco para os aposentos do papa : adquiri em Bolonha algumas obras que deverão encantá-lo. Antes disso, querem que eu lhes apresente meu domínio ? Concordei, não sem antes procurar com o olhar a aprovação de da Vinci : distrair daquele jeito um bibliotecário do papa me parecia impertinente. No entanto, tranquilizado pela atitude do mestre, segui Tommaso Inghirami pela primeira sala da Vaticana. Havia ali quatro belas mesas de carvalho que brilhavam, bem enceradas, e cadeiras de veludo vermelho sob as janelas. Armários escuros e imponentes, com ferragens douradas, preenchiam o resto das paredes. Adivinhei os livros dentro desses armários e fiquei um pouco decepcionado por não poder me aproximar mais deles. — Esta é a sala dos manuscritos latinos – começou Inghirami com um gesto largo. – Os maiores tesouros de nossa língua estão aí. Claudio, Ausônio, Prudêncio, o divino Santo Agostinho, mas também Tertuliano, Suetônio, Tácito ou Sêneca. Todos bem encadernados e bem copiados. Esta sala é aberta a todos os leitores interessados nas obras mais comuns. Darei ordens para que se sinta bem aqui. Agradeci. — Agora, vire-se, meu jovem amigo, e admire nosso afresco de Mellozo da Forti. Ele imortaliza aquele a quem tudo devemos. Ergui os olhos para o local indicado, uma bela pintura em que o artista trabalhara cuidadosamente a profundidade. No cenário ocre e azul de uma galeria antiga, viam-se seis personagens marcados pela sabedoria e pelo recolhimento. Um estava sentado numa bela poltrona cravejada de franjas, vestido com o traje pontifical. Outro estava ajoelhado diante dele, sem chapéu, mostrando com o dedo uma inscrição na parte inferior da pintura. Os quatro restantes, de pé e um pouco afastados, pareciam discutir entre si assuntos importantes. — O homem sentado na poltrona não é outro senão Sua Santidade Sisto IV, o bem amado fundador de nossa biblioteca – explicou Inghirami. – Foi graças à sua generosidade e clarividência que as paredes deste templo do espírito puderam ser levantadas, e estas estantes, preenchidas. Não se assistiu a mais nobre empresa desde as coleções de Alexandria, pode acreditar em mim. — E quem é o personagem ajoelhado diante dele ? – perguntei. — É o meu ilustre predecessor, Bartolomeu Platina, o primeiro bibliotecário da Vaticana. Seu gênio e sua tenacidade são um exemplo para todos os que o sucederam : sem ele, jamais teríamos podido reunir tantas obras-primas. Infelizmente, Platina morreu seis anos após sua nomeação. Este quadro comemora a um só tempo a bula de fundação da biblioteca e sua entrada em funcionamento, em 1475. — É o mesmo Platina que escreveu uma Vida dos papas ? – interveio Leonardo. — O próprio. Ele a escreveu a pedido de Sisto IV. Uma composição magistral, de grande verdade histórica. Também deixou algumas notas que um dia terão de ser impressas. Quanto aos quatro homens que estão atrás, são todos sobrinhos do papa. Devem ter reconhecido o que está no centro : o cardeal Della Rovere, futuro Giulio II. Um dos maiores papas de todos os tempos, e meu benfeitor. Tommaso Inghirami pronunciou essas últimas palavras com uma espécie de êxtase. Depois, girou bruscamente os calcanhares e se dirigiu à segunda porta : — Agora, vamos à sala grega ! Penetramos numa segunda peça, ainda maior do que a primeira, revestida com os mesmos armários imponentes. Mas não havia nem mesas nem poltronas, apenas oito púlpitos de ferro forjado, que permitiam ler de pé, e um longo banco sob a janela. Observei de passagem a elegância do pavimento branco e preto, que desenhava um entrelaço de motivos florais. Com sua frieza e sua austera beleza, essa peça se prestava sem dúvida ao estudo e à meditação. — Guardamos aqui os manuscritos gregos : filósofos, tragediógrafos, astrólogos, médicos... No total, mais de 1.500 volumes, aos quais se devem acrescentar livros mais recentes e uma coleção de gravuras cujos mais belos modelos se encontram nas gavetas que ficam embaixo deste banco. Se quiser consultar alguma dessas obras, terá que pedir aos custódios que me auxiliam em minha tarefa. E se quiser emprestar algum desses livros, desde que o estado dele permita, terá de se inscrever neste registro. Ao dizer isso, apontou para um grande volume, aberto sobre um dos púlpitos, no qual se podiam ler nomes alinhados em colunas. — Então vocês emprestam livros ? — É claro ! Ao papa, evidentemente, mas também aos cardeais, aos estudiosos, aos amantes das letras que o desejarem. O que seria uma biblioteca que não desse vida a suas obras ? Meu espanto foi ainda maior. — E vocês não temem que elas sejam estragadas ? Ele sorriu : — Tomamos, é claro, nossas precauções. Fez um sinal para que eu me aproximasse do registro. Li no alto da primeira página : Patrizzio Bocherone/empréstimo : Tratado de arquitetura, Il Filarete/depósito : um anel de rubi Cardeal Bibbiena/empréstimo : De ecclesiastica potestate, Egídio de Roma/depósito : um cálice de prata Núncio Federico Moretti/empréstimo : De docta ignorantia, Nicolau de Cusa/depósito : duas fivelas de ouro Seguia-se uma lista de outros nomes na qual figuravam diversas personalidades da cidade, inclusive Leonardo, cada um mencionando o objeto deixado em garantia. — É bastante raro que nossos livros não voltem em excelente estado – concluiu Inghirami. – Venham, passemos agora à Grande Biblioteca. Atravessamos outra porta, e um calor benfazejo nos envolveu. A peça que se abria a nossa frente era um verdadeiro esplendor : janelas altas com vitrais marcados com as armas dos Della Rovere, uma lareira onde ardia um bom fogo, uma grande mesa preta equipada com ganchos para fixar os manuscritos, tapeçarias vermelhas decoradas com mapas, e, sobretudo, uma coleção de instrumentos de geometria e astronomia que refletiam as chamas como um balé de pequenos diabos. Um homem de cerca de cinquenta anos, cabeludo e de estatura avantajada, estava debruçado sobre um manuscrito repleto de iluminuras suntuosas. — Este é Gaetano Forlari, meu segundo custódio. Cumprimentamo-nos. — Logo os deixarei em suas mãos. O que veem aqui é a sala reservada à consulta dos manuscritos mais raros. Para o conforto de nossos eruditos, acendemos o fogo no inverno, o que nos obriga a afastar a grande mesa e a guardar nossas obras em armários de metal. Levantou uma das tapeçarias vermelhas e descobriu uma formidável biblioteca protegida por fechaduras e ferrarias. — Devemos todas essas benfeitorias a Sisto IV, que mandou realizá-las em 1475, paralelamente aos trabalhos de sua Capela Sistina – que fica bem em cima de nossas cabeças. Apontou para o teto. — Hão de concordar que não se pode desejar melhor vizinhança para elevar o espírito ao conhecimento. Da Vinci e eu assentimos. — Outro dia, quando tivermos tempo – prosseguiu ele – hei de lhes falar do anexo de Santo Ângelo, onde conservamos algumas obras únicas e algumas encíclicas do papa. Mas a manhã avança e não quero deixar Sua Santidade esperando. Gaetano, instale estes senhores nesta sala antes que cheguem muitos leitores. Sirva Mestre da Vinci como de costume e satisfaça o melhor possível nosso jovem Sinibaldi. Pelo que você se interessa, meu jovem ? — Para dizer a verdade, estudo medicina na universidade e... — Perfeito. Certamente, temos aqui com que aplacar sua sede. Deixo-os agora aos cuidados de meu custódio, mas não hesite em vir me ver outras vezes. Tommaso Inghirami saudou-nos com grande amabilidade. Gaetano Forlari veio até nós e se informou dos desejos de da Vinci. Este queria retomar a leitura das Aritméticas do matemático Diofanto, cujos escritos estavam sendo redescobertos. Então o custódio Gaetano se virou para mim e propôs que eu escolhesse algo da sala grega nas estantes consagradas à medicina. Escoltou-me até um dos armários e abriu-o, com a ajuda do impressionante molho de chaves que pendia de sua cintura. Dei um passo para trás : nas estantes, encontravam-se dezenas e dezenas de volumes, todos cuidadosamente encadernados e com indicações no corte : “Galeno”, “Hipócrates”, “Mondino dei Luzzi”, ou ainda : Cura das feridas, Considerações sobre a medicina dos corpos, Ervas medicinais, Doutrina da escola de Salerno, etc. Cerca de 2.000 anos de medicina que se ofereciam a mim. — Vamos, escolha – encorajou-me Gaetano. Após alguns instantes de hesitação, decidi-me por certos autores ou assuntos a que meus professores tinham aludido recentemente : primeiro, a Rogerina de Ruggiero da Frugardo ; a seguir, uma coletânea de textos em versos, de Gilles de Corbeil, médico francês do rei Filipe Augusto ; finalmente, uma curiosidade de que meus mestres só falavam por subentendidos : as Generalidades, do maometano Averróis. Provido desses tesouros, voltei para a Grande Biblioteca, tomando cuidado para não incomodar da Vinci, mergulhado em sua leitura. Instalei-me, portanto, de costas para a lareira, e comecei a folhear a Rogerina, saboreando a felicidade inaudita de estar na Vaticana. Ao cabo de um momento, Leonardo se levantou, com seu livro na mão, para sussurrar algo no ouvido do custódio. Os dois desapareceram na direção da sala grega enquanto eu começava a olhar a coletânea de Gilles de Corbeil. Um instante depois, a porta se abriu de novo. Eu estava lendo um dos poemas do médico francês sobre a urina, poema que se seguia a outro, sobre o pulso. Para dizer a verdade, sua ciência não me ensinava nada de novo sobre os princípios da escola de Salerno : a urina informa sobre a saúde do fígado, e o pulso, sobre a solidez do coração. O exame deste e daquela é essencial para o diagnóstico do doente, já que o coração e o fígado constituem, junto com o cérebro e os testículos, os órgãos principais que regem o organismo. Mas prossegui a leitura mesmo assim, encantado pela forma divertida desses poemas medicinais. Seja como for, ao erguer os olhos, esperava ver da Vinci ou o custódio de volta à Grande Biblioteca. Mas não foi o que aconteceu. O homem que estava ali era um velho vestido de preto, com o perfil afilado de uma ave de rapina, e algo que me pareceu mau em seu olhar. Considerou-me longamente sem dizer uma palavra, como se descobrisse um estranho em seu território. Seu silêncio era tão glacial que não encontrei uma palavra para cumprimentá-lo. Quando terminou de me examinar, veio até a mesa para ver de mais perto os manuscritos que eu estava consultando. — O insensato ! – exclamou. Deu meia volta com uma agilidade da qual não o teria acreditado capaz. Escutei então uma breve discussão na sala latina e, a seguir, passos precipitados. Finalmente, o custódio Gaetano apareceu diante de mim, precedendo o homem que fazia grandes gestos e que, ao chegar, se apoderou do volume de Averróis. — Olhe, Gaetano Forlari – disse, brandindo o livro. – Veja que obras ímpias são consultadas entre estas paredes ! E por sua culpa ! As Generalidades ! Não sabia que o ensino de Averróis foi proscrito pela Igreja ? Que Tommaso de Aquino condenou seus fundamentos e que o papa Leão X proibiu sua difusão ? O custódio Gaetano estava pálido. — Os princípios filosóficos, sim, mas quanto à medicina... — A medicina ! E o que o faz pensar que a medicina de Averróis é menos ameaçadora do que o conjunto de seu sistema ? Acha que um filósofo, ainda por cima sarraceno, que nega reiteradamente a imortalidade da alma, terá mais discernimento e menos loucura no que tange ao corpo ? Você está blasfemando, Gaetano Forlari, e, ainda pior, está dando aos outros munição para blasfemar ! O homem de perfil agudo mal continha sua raiva. Seus lábios tremiam, e seus dedos estavam brancos de tanto apertar o livro. Ele retomou : — Inghirami ficará contente de saber que você mata a sede dos romanos na fonte da heresia. Pois aquilo que poderia ser considerado apenas incompetência em outros lugares, aqui, na Vaticana, só pode ser visto como provocação. Tome cuidado, Gaetano F

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